Mulher do ano


 

Meia noite.
O ar badalado de sinos profana-se com o som agastado das buzinas.
Um exagero de rojões ilumina a noite
perfurando o céu
e esparramando uma miuçalha de borralha.

Num vestido tradicionalmente novo,
e ousadamente branco,
distraída e atrevida,
umas sombra atravessa a avenida.

Muda de calçada com a mesma indiferença
e negligência de quem desfolha o calendário
sem alterar o diário da existência.
Vence o espaço de um ano arrastando o passo
e, num gesto inseguro,
alcança o futuro.

Seu corpo é um manequim de frustrações
Num sorriso, falseado de ilusões
esconde, entre lábios contraídos,
um hálito embolorado de beijos esquecidos.

A maquiagem enferruja-lhe o rosto.
O desgosto escorrega do olhar
encontrando um caminho de fuga
na ruga que o blush procura ocultar.
Grotesca tristeza descascando a beleza.

Num gesto programado disfarça o tremor derramado
da taça oferecida por mão desconhecida.

E, na esquina da vida, em plena multidão,
a solidão, abraçada com o povo, saúda o “Ano Novo”.

Bebe a saudade  escondida no gole da lembrança,
enquanto o olhar alcança a silhueta do passado
abandonado no outro lado da avenida.

Na ânsia de voltar e reencontrar a esperança esquecida
foi colhida, por fatalidade, pela velocidade da vida.

Num gemido de morte ela brinda sua sorte:-
- À mulher,
que não teve tempo para sonhar!
- À amante,
que se esqueceu de amar.

Quando a festa acabou
alguém encontrou na calçada
uma taça quebrada
e o branco amarrotado de um sonho atropelado.

A ano começou sempre igual.
E o mundo voltou ao normal.
O dia amanheceu e a cidade varreu
uma história qualquer
de uma estranha mulher.


                                                                                                  Alma de Almeida