Vozes d'África

 

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito, 
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

 

Qual Prometeu tu me amarraste um dia 
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé! ...
Por abutre — me deste o sol candente, 
E a terra de Suez — foi a corrente 
Que me ligaste ao pé...

 

O cavalo estafado do Beduíno 
Sob a vergasta tomba ressupino 
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja, 
Quando o chicote do simoun dardeja 
O teu braço eternal.

 

Minhas irmãs são belas, são ditosas... 
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes 
Embala-se coberta de brilhantes 
Nas plagas do Hindustão.

 

Por tenda tem os cimos do Himalaia... 
Ganges amoroso beija a praia 
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

 

A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara; 
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...

 

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio 
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doudo amante 
Segue cativo o passo delirante 
Da grande meretriz.

 

***

 

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

 

E nem tenho uma sombra de floresta... 
Para cobrir-me nem um templo resta 
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito 
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

 

Como o profeta em cinza a fronte envolve, 
Velo a cabeça no areal que volve 
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada... 
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada 
No seu branco albornoz. . . "

 

Nem vêem que o deserto é meu sudário, 
Que o silêncio campeia solitário 
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra 
Boceja a Esfinge colossal de pedra 
Fitando o morno céu.

 

De Tebas nas colunas derrocadas 
As cegonhas espiam debruçadas 
O horizonte sem fim ... 
Onde branqueia a caravana errante, 
E o camelo monótono, arquejante 
Que desce de Efraim

 

***
 

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! 
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?... 
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime 
Eu cometi jamais que assim me oprime 
Teu gládio vingador?!

 

***

 

Foi depois do dilúvio... um viadante, 
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "

 

Desde este dia o vento da desgraça 
Por meus cabelos ululando passa 
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas, 
E o nômade faminto corta as plagas 
No rápido corcel.

 

Vi a ciência desertar do Egito... 
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada 
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...

 

Cristo! embalde morreste sobre um monte 
Teu sangue não lavou de minha fronte 
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso, 
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

 

Hoje em meu sangue a América se nutre 
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora 
Qual de José os vis irmãos outrora 
Venderam seu irmão.

 

Basta, Senhor!  De teu potente braço 
Role através dos astros e do espaço 
Perdão p'ra os crimes meus! 
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus!  Senhor, meu Deus!!...

 

                                                       Antonio Frederico de Castro Alves